domingo, 14 de abril de 2013

A Epopeia de Gilgamesh. Uma análise sobre a inter-relação entre vida civilizada e vida selvagem

- Vida civilizada -

O principal cenário onde se dá a vida civilizada é a cidade de Uruk, situada na antiga Mesopotâmia. À época em que a civilização Suméria habitava a região, entre 2500 e 3000 AC. O texto deixa claro que Gilgamesh fez questão de construir grandes fortificações militares ao redor da cidade (muralhas e grandes baluartes), provavelmente como uma forma de afirmar sua imagem de poder implacável, tanto externamente quanto para seu próprio povo. Uma vez que todos o temiam, respeitavam e reconheciam como um semideus, virtualmente imbatível. Além disso, a cidade ainda contava com belos templos para culto aos deuses Eanna, Anu e Ishtar, ostentando obras arquitetônicas das quais "não é possível para um homem ou rei construir algo que se equipare", como podemos observar no parágrafo que segue:
"Em Uruk ele construiu muralhas, grandes baluartes, e o abençoado templo de Eanna, consagrado a Anu, o deus do firmamento, e a Ishtar, a deusa do amor. Olhai-o ainda hoje: a parte exterior, por onde corre a cornija, tem o brilho do cobre; sua parte interior não conhece rival. Tocai a soleira, ela é antiga. Aproximai-vos de Eanna, a morada de Ishtar, nossa senhora do amor e da guerra: é inigualável, não há homem ou rei que possa construir algo que se equipare."
Poder de luta de Gilgamesh: Over 9000.
É possível observar alguns aspectos preconizados pela vida civilizada daquele povo, como a divisão formal e hierárquica de papéis, que gera a total submissão das pessoas a um rei que se aproveita de seu poder para possuir todas as virgens, filhas e esposas de Uruk, de forma luxuriosa. Como mostra o seguinte parágrafo:
"Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos, até mesmo as crianças; e, no entanto, um rei deveria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado; nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre; no entanto, é este o pastor da cidade, sábio, belo e resoluto."

- Vida selvagem -

Se Gilgamesh é o representante da vida civilizada, a narrativa traz no personagem Enkidu a figura do homem selvagem, que não foi contaminado pela sociedade e seus costumes e, por conseguinte, é uma pessoa pura e inocente, em constante contato e harmonia com os animais e a natureza. Contudo, o nascimento de Enkidu, a exemplo do de Gilgamesh, é dado sob circunstâncias divinas. O que o faz um semideus, teoricamente tão forte quanto o rei.

O parágrafo a seguir mostra a relação serena e inocente de Enkidu com a natureza:
"Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; elesondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pêlos emaranhados, como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água."
Retrato falado de Enkidu 

- Convivência entre ambas -

Fica claro que e a forma de trazer um homem selvagem à vida civilizada, na história contada, é apresentá-lo aos prazeres carnais do sexo. Quando um caçador fica sabendo da existência de Enkidu, um ser provavelmente tão forte quanto Gilgamesh mas que vive recluso na selva, ordena que seu filho vá a Uruk e volte com uma rameira, uma "filha do prazer", incumbida com a missão de introduzir Enkidu à vida civilizada, através de sua arte.

Caçador para o filho: "Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força deste selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do templo do amor; retorna com ela e deixa que seu poder subjugue este homem. Da próxima vez que ele descer para tomar água no poço, ela estará lá, nua; e quando a vir, acenando para ele, vai abraçá-la, e os animais da selva passarão a repudiá-lo."

Gilgamesh diz: "Filho do Caçador, volta, leva contigo uma rameira, uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva certamente passarão a repudiá-lo."

Com a consumação do ato sexual, Enkidu está adentrando a vida civilizada dos Sumérios de forma resoluta ("Por seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se esquecera de seu lar nas colinas."). Feito isso, simbolicamente os animais passam a repudiá-lo ele já não mais parece fazer parte da selva ("...depois de satisfeito, porém, ele voltou para os animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham- se em disparada.")

A convivência entre sociedade civilizada e selvagem, no texto, parece muito difícil, uma vez que o homem selvagem precisa deixar de sê-lo para se relacionar com o homem civilizado. Além disso, aparentemente o único lugar onde um homem poderoso como Enkidu consegue ser uma pessoa inocente é na selva, enquanto na cidade o poder de Gilgamesh é direcionado à violência e à libertinagem. 

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